Artigo
SERVIÇOS E FORNECIMENTOS CONTÍNUOS – EXTINÇÃO DO CONTRATO E PRAZOS
SERVIÇOS E FORNECIMENTOS CONTÍNUOS – EXTINÇÃO DO CONTRATO E PRAZOS
Ivan Barbosa Rigolin
(jan/25)
I – Chama a atenção a previsão do inc. III do art. 106 da Lei nº 14.133/21, sobre extinção do contrato de fornecimentos contínuos, e do de prestação de serviços contínuos.
A lei de licitações destacou essa hipótese das regras aplicáveis generalizadamente à extinção dos contratos, portanto especificando e particularizando dentro do quadro geral.
Os serviços contínuos, como se sabe, sempre foram, na lei, destacados dos demais serviços. E desta vez o legislador teve a atenção de incluir os fornecimenbtos ao lado dos serviços contínuos, medida de boa técnica.
Reza a lei:
Art. 106. A Administração poderá celebrar contratos com prazo de até 5 (cinco) anos nas hipóteses de serviços e fornecimentos contínuos, observadas as seguintes diretrizes:
I - a autoridade competente do órgão ou entidade contratante deverá atestar a maior vantagem econômica vislumbrada em razão da contratação plurianual;
II - a Administração deverá atestar, no início da contratação e de cada exercício, a existência de créditos orçamentários vinculados à contratação e a vantagem em sua manutenção;
III - a Administração terá a opção de extinguir o contrato, sem ônus, quando não dispuser de créditos orçamentários para sua continuidade ou quando entender que o contrato não mais lhe oferece vantagem.
§ 1º A extinção mencionada no inciso III do caput deste artigo ocorrerá apenas na próxima data de aniversário do contrato e não poderá ocorrer em prazo inferior a 2 (dois) meses, contado da referida data.
§ 2º Aplica-se o disposto neste artigo ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática.
Art. 107. Os contratos de serviços e fornecimentos contínuos poderão ser prorrogados sucessivamente, respeitada a vigência máxima decenal, desde que haja previsão em edital e que a autoridade competente ateste que as condições e os preços permanecem vantajosos para a Administração, permitida a negociação com o contratado ou a extinção contratual sem ônus para qualquer das partes.
Art. 108. A Administração poderá celebrar contratos com prazo de até 10 (dez) anos nas hipóteses previstas nas alíneas “f” e “g” do inciso IV e nos incisos V, VI, XII e XVI do caput do art. 75 desta Lei.
II – Em primeiro lugar é preciso ter presente e claro o que são fornecimentos e o que são serviços contínuos.
Fornecimento
Em direito civil fornecimento é um contrato civil de um serviço prestado continuadamente, ou de compras entregues periodicamente, como no primeiro caso é o fornecimento de energia elétrica, de gás, de telefone ou de água, e na segunda hipótese é o fornecimento de merenda escolar de particular para particular, em c contrato civil.
No direito público, caso da lei de licitações, é um contrato de compra com entrega parcelada e não de uma só vez, como o fornecimento diário de merenda escolar para escolas do poder público.
Continua sendo um contrato civil de compra e venda com entrega parcelada, mas por ser público o contratante o contrato, mesmo civil, sofre inúmeras injunções públicas dadas pela lei de licitações e contratos. As partes nos contratos civis se acham em condição de pressuposta igualdade de direitos e obrigações.
Não é porque o contratante é pessoa pública que esse contrato se transforma em contrato administrativo, e nem todo contrato com o poder público é administrativo, sendo, aliás, que a imensa maioria deles é de contratos civis.
Serviços contínuos
Aqui já tem a figura de um contrato administrativo, que é uma espécie de contrato com cerca de 250 anos de história dentre os demais ramos de direito, surgido na França como produto do direito administrativo, originário segundo a tradição pela doutrina que se passou a formar após um acidente de trem que vitimou uma menina.
Os tribunais franceses bem logo, naquele então, se deram conta da insuficiência e impropriedade do direito civil para resolver as demandas que daquele evento se originaram, e para suprir a lacuna jurídica a Europa passou a instituir regras de direito do Estado, e de um contrato todo especial no qual a parte pública, contratante, tinha alguns direitos que o particular não detinha, numa evidente inequivalência de direitos e obrigações.
Nesse mundo do contrato administrativo o contrato de serviços contínuos, ou executados de forma continuada, obedece as regras do direito administrativo e se caracteriza, repete-se, pela predominância de direitos da parte pública sobre a privada ([1]).
Caracteriza-se por ter objeto de serviços indispensáveis ao contratantes público, que ele jamais poderá descartar, que ele próprio ou alguém terá necessariamente de prestar, e que são executados ou de forma contínua dia após dia, ou a cada período certo, ou de outro modo que precisam ser postos à disposição do contratante público permanentemente, em regime de prontidão, sobreaviso ou, em bom vernáculo, stand-by.
Fornecimento é contrato civil de compra e venda com entrega parcelada. Serviços contínuos são um contrato administrativo de prestação de serviço e não de compra.
III – Vista a diferença, o art. 106 da lei descarta quaisquer outros contratos que não sejam de serviços contínuos ou de fornecimentos contínuos pelo contratado particular ao poder público contratante. Apenas esses dois contratos se submetem às regras do art. 106.
Para qualquer desses dois contratos o prazo inicial máximo é de cinco anos; licitado ou não, o prazo máximo é esse, antes de se chegar à hipótese de aplicar o art. 107, e fora da hipótese do art. 108, ambos que se examinarão adiante.
Uma vantagem sobre a lei anterior é que o prazo quinquenal pode ser estabelecido de início, não mais dependendo de burocráticas e muito trabalhosas prorrogações de prazos iniciais menores.
E não se tema por eventual descontentamento do contratante pela execução, porque a possibilidade de extinção (e não mais rescisão) está sempre presente, constando deste art. 106.
O primeiro requisito para a celebração destes contratos (art. 106, inc. I) é a justificativa, no expediente da contratação, da vantagem que o tempo dilatado apresenta ao ente contratante, com relação a contratos de menor duração.
Não é difícil produzi-la, todos sabendo da conveniência de se reduzir a burocracia, quase sempre sem sentido e sem utilidade, dos procedimentos prorrogatórios – de contratos que na maior parte das vezes são concebidos para durar o quinquênio ou mais, e não para exigir reafirmações do óbvio e do generalizadamente sabido.
Apenas na prorrogação para além dos cinco anos originários, conforme art. 107, é que será necessária aquela demonstração.
O inc. II do art. 106 em parte parece contrariar o que se disse, porém não é bem isso que ocorre na prática. Exige que a cada exercício o ente contratante declare ter crédito orçamentário onde classificar a despesa a cada exercício, o que é de uma bisonhice cavalar, e dá ideia de que o contratante não conhece orçamento nem contabilidade pública.
Mas ainda o inc. II exige a manifestação de que manter o contrato é vantajoso, o que, convenhamos, é de uma hipocrisia e uma demagogia absoluta, e está a escrito na lei tão só para o legislador demonstrar quão zeloso é com as finanças públicas. Mera formalidade para cumprir tabela, recomenda-se que o contratante escreva no expediente alguma coisa a este respeito. Cada ator tem um papel nesse teatro.
IV – O inc. III deste art. 106, entretanto, é que provoca fortes emoções.
Confere ao contratante público o direito de simplesmente extinguir o contrato – sem ônus - em duas hipóteses: a) não dispuser e créditos orçamentários em que enquadrar a despesa no exercício, e b) o contrato não mais lhe oferecer vantagem.
Na primeira hipótese faltaram créditos orçamentários. Ora, como isso pode acontecer se o orçamento é sinônimo de planejamento, e se precisa considerar todos os compromissos a vencer no exercício ? Foi acaso intencional a exclusão dos créditos na peça orçamentária ?
Mas sem embargo da estranheza pode acontecer – na vida e na Administração pública tudo pode acontecer - de simplesmente o orçamento não ter meios e não ter como contemplar aqueles créditos específicos e suficientes para cobrir o contrato. Nessa hipótese fica compreensível a previsão extintiva da lei.
A segunda hipótese é a de o contrato sic et simpliciter deixar de ser vantajoso, conforme se apure e se demonstre no expediente respectivo. Isso pode, muito mais factivelmente, acontecer, dada a variação ou a cambiância de preços do mercado, e a própria flutuação do interesse do ente contratante, que ontem era um e hoje pode ser ouro radicalmente diverso.
Mas a leve e alegre previsão de que a extinção será sem ônus –como se extinguir um contrato pudesse ser assim medida tão singela, deixa o leitor com o sifonáptero alojado na face traseira de seu pavilhão auricular, ou a pulga atrás da orelha.
Caso o contratado demonstre prejuízo pela extinção unilateral pleiteará, administrativa e/ou judicialmente, indenização por ele. Invocará o art. 138, § 2º, da lei, ainda que seja norma genérica e haurida do direito civil, mas poderá ainda invocar regras basilares do Código Civil f]em seu pleito.
Muitos contratos de fornecimentos contínuos ou de serviços contínuos exigem mobilização e instalações do contratado, ou locações mobiliárias e imobiliárias, todas programadas para durar o mesmo que o contrato, e a desmontagem súbita do dispendioso esquema por certo não será objeto de gratuita gentileza ao poder público.
Em conseguindo demonstrar prejuízo pela súbita extinção – após exercer seu contraditório que o ente contratante lhe precisa assegurar -, seguramente obterá alguma indenização, e a operação extintiva resultará, enfim, onerosa ao contratante.
Mas o § 1º do artigo, muito razoável, confere alguma segurança ao ente.
V – O § 1º do art. 106 fixa que qualquer das duas extinções previstas no caput somente poderá dar-se no subsequente aniversário do contrato (considerada a data em que o ente resolveu extinguir), ou então em dois meses, se o aniversário estiver mais próximo que isso.
Tal permite ao contratado – ao menos na maioria das hipóteses – desmobilizar-se, porém mesmo essa desmobilização antecipada deve significar despesa extra, imprevista, ao contratado, e isso, em ocorrendo, não será desconsiderado na consumação da extinção, vislumbrando-se composições negociais.
O § 2º, encerrando o art. 106, manda aplicar-se o artigo ao caso de aluguel de equipamentos – e em princípio aluguéis imobiliários estão fora da previsão, salvo para algum intérprete amante do elastério exegético para quem imóveis são equipamentos – e também para contratos de utilização de programas de informática, hoje em dia absolutamente comuns em incontáveis entes públicos.
É que aluguel ou locação não são bem contratos de serviço, e o direito administrativo da lei de licitações resta pouco à vontade para enquadrar esses ajustes em qualquer categoria de contrato administrativo, daí fazê-los assimilar-se a contratos de serviços. Não é serviço ... mas parece.
VI – O art. 107 fixa a regra da prorrogação de prazo dos contratos a que se refere o art. 106, que é quinquenal como se lê desse último dispositivo e como foi visto.
Fixado pelo prazo inicial que for, esses contratos podem ser prorrogados para durar até dez anos - em períodos iguais ou desiguais porque a lei não especifica nem restringe -, desde que: a) o edital da licitação havida, ou o próprio contrato celebrado sem licitação, tenha previsto essa prorrogabilidade, b) a cada prorrogação a autoridade contratante ateste a permanência da vantagem ao contratante ([2]).
Muito melhor que a lei anterior, esta regra até este ponto – porque o artigo termina de modo melancólico, tratando de extinção quando o contrato simplesmente esgotou seu prazo - desburocratiza a nossa anterior tradição e racionaliza as prorrogações, que em geral é o que ambas as partes querem ou mesmo esperam desde o início da execução.
VII – O art. 108, na esteira da racionalização dada pelos artigos anteriores, admite contratações diretas, dispensável a licitação (art. 75), já pelo prazo de dez anos, nas seguintes hipóteses:
(art. 75, inc. IV, al. f) – bens ou serviços produzidos no Brasil, de alta complexidade tecnológica e defesa nacional. Não basta serem produtos nacionais nem que envolvam alta tecnologia, porque além disso precisam referir-se à segurança nacional;
(inc. IV, g) – materiais finalísticos das Forças Armadas, excluídos aqueles de uso pessoal e administrativo, sempre que necessário manter a padronização de apoio logístico às Armas – o que supostamente nem sempre acontece. Deve ser autorizado o negócio pelo comandante da força militar que tenha autonomia para contratar, e não a autoridade máxima da Arma;
(inc. V) - contratações, do objeto que for, destinadas ao cumprimento dos arts. 3º, 3º-A, 4º, 5º e 20, todos da Lei nº 10.973/04 – uma indescritivelmente ruim colcha de retalhos cuja leitura constitui um castigo e um pesado tormento a quem obrigação de fazê-lo - relativos a agências de fomento e instituições científicas e tecnológicas (ICTs);
(inc. VI) – contratações suscetíveis de comprometer a segurança nacional, conforme estabelecido pelo Ministério da Justiça. Inciso patético e ridículo, porque se pode comprometer a segurança nacional o objeto que aqui se permite contratar deveria ser simplesmente proibido, e não facilitado com dispensa de licitação;
(inc. XII) – contratações, com transferência de tecnologia, de produtos estratégicos para o SUS - materiais e serviços, e ocasionalmente até mesmo obras, entendemos -, indicados pelo próprio Sistema Único de Saúde, a valores compatíveis com os definidos no instrumento da transferência de tecnologia. Todas essas características devem estar presentes e evidenciadas nos contratos por este inciso, e
(inc. XVI) – aquisição, por União, Estado, Distrito Federal ou Município, de insumos estratégicos para saúde, de fundação instituída para apoiar o poder público e criada antes de 1º de abril de 2.021, a preços compatíveis com o mercado.
A impressão que a lei dá é a de que as novas fundações, instituídas após 1º de abril de 2.021, são inidôneas ou suspeitas, porque não se beneficiam deste inciso, e para vender seus produtos precisam submeter-se a licitação. Não é nova a regra da discriminação, tendo provindo essa esquisitice da lei anterior, onde fazia tanto sentido quanto agora na nova lei: nenhum.
[1] O que só em si não autoriza ninguém a concluir como o Barão de Itararé, que muita vez a vida pública é a continuação da privada. Ou que a pessoa sai da vida pública para ingressar na privada. As palavras têm de ser usadas com muita civilidade ...
[2] Evitemos a todo custo a palavra vantajosidade, o neologismo mais horroroso dos dois últimos séculos, que pediu alvará para ser feio e entrou na fila três vezes. Quem o inaugurou deve ter sérios problemas existenciais.