APLICA-SE A LEI DE LICITAÇÃO ÀS ENTIDADES DE FISCALIZAÇÃO DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL ?

APLICA-SE A LEI DE LICITAÇÃO ÀS ENTIDADES DE FISCALIZAÇÃO DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL ?

 

Ivan Barbosa Rigolin

(fev/25)

 

 

I – Uma questão que se arrasta pelo tempo e já atravessa décadas no Brasil é a que envolve os Conselhos, as Ordens e as demais entidades de fiscalização do exercício profissional, referentemente à aplicabilidade  das normas publicísticas, concebidas e plasmadas na Constituição e nas leis para a Administração Pública. A lei de licitações e contratos administrativos é apenas uma delas.

As entidades de fiscalização do exercício profissional em geral são autarquias especiais, corporativas, singulares, sem qualquer vínculo com a Administração pública, e  lhes interessa serem autarquias sobretudo para poderem instituir e conbrar contribuições corporativas, quer das pessoas jurídicas, quer das pessoas naturais (chamadas físicas pelo imposto de renda). 

Fossem associações privadas, então apenas se associaria quem o quisesse fazer, não  sendo compulsória a filiação, e com isso a contribuição.  O – entendemos nós – funcionalmente muito pesado ônus de serem autarquias tem essa justificativa e essa explicação, que nenhum segredo contém nem é surpresa para ninguém. Serem autarquias em verdade, por isso mesmo, interessa  às entidades, e o motivo é cem por cento fiscal.

Mas o só fato de serem autarquias já enseja confusão suficiente no cenário institucional do país, que é proverbialmente atrasado, refratário à evolução, e enferrujado como um trem que permaneceu um século na intempérie.

Trabalhar racionalmente com o ordenamento institucional no Brasil é tão simples quanto pastorear  uma manada de brontossauros numa escarpa de pedra em dia de chuva. A agilidade dos nossos sistemas, e da mentalidade que os concebeu,  é a mesma.

 

II – A maior entidade e de fiscalização do exercício profissional brasileira é a OAB - Ordem dos Adogados do Brasil. Congrega o maior número de profissionais inscritos, sem dizer das milhares de sociedades de advogados também inscritas.

Foi criada em 18 de novembro de 1.930 pelo Decreto nº 19.408, para defender e representar os advogados e seus interesses profissionais dentro do mercado de trabalho e ante todas as esferas. Hoje, evoluído o direito,  é regida pela Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1.994, a qual foi profundamente alterada por diversas leis nas décadas recentemente passadas, assim como sofreu o influxo de algumas ADIns sobre temas da lei.

O resultado de  tantas movimentações legislativas é que a OAB, após discussões inúmeras e as mais variadas,  foi julgada como sendo serviço público independente – seja lá o  que isso queira exatamente significar – e de função constitucionalmente privilegiada,  e que por tudo isso não integra o quadro das autarquias federais, em comuns nem especiais,  nem se submete ao controle do Tribunal de Contas da União ([1])

Nada disso. A OAB não foi concebida como serviço público, e para nós jamais os prestou. Ao invés disso, presta serviços e fiscaliza única e exclusivamente à categoria dos advogados, ainda que seja constitucionalmente dotada da titularidade de certas ações públicas – o que entretanto não a transforma em ente público.

A esse respeito a Lei nº 8.906/94 é bastante enfática e não permite divagações:

art. 44 (...)

§ 1º A OAB não mantém com órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico.

 

III – O exemplo da OAB frutificou dentre as outras entidades de fiscalização do exercício profissional em nosso país, as quais atualmente somam pouco mais de 30 (trinta), sendo todas, ou praticamente todas, autarquias especiais corporativas, sui generis, totalmente diversas das autarquias  comuns.

Após o julgamento da ADC 36, concluído em 8 de setembro de 2.020 – e reconheçamos: um verdadeiro tratado de direito, copioso e sólido, que dificilmente será revertido senão por alterações constitucionais  – não pode mais restar dúvida sobre a natureza jurídica das entidades fiscalizadoras do exercício profissional das profissões disciplinadas (e não ‘regulamentadas’, como jejunos em direito um dia inventaram,  já que leis disciplinadoras de profissões são muito mais que regulamentos) por leis federais.

Sua natureza verdadeira, paralelamente ao direito formal e muito antes de a de indiferenciadas autarquias, é a de serem associações, clubes, entidades de classe, sabendo-se que apenas são autarquias para poder arrecadar contribuições dos profissionais que albergam, como condição para que possam exercer  a profissão. 

Foram elas meras associações, então não poderiam impor anuidades e contribuições aos filiados, eis que ninguém no país é obrigado a associar-se  ou a se manter associado. 

Carregam então o – pesadíssimo, repete-se  - ônus de se  chamarem autarquias, porém chamá-las  apenas pelo primeiro nome é errado, antitécnico e injusto, porque o seu nome completo é o de autarquias especiais, corporativas, sui generis ou singulares.

Somente assim está correta a designação.

 

IV – Tão pesado é o ônus de serem autarquias – quando na verdade apenas representam, cada uma, uma categoria profissional -, que nas leis que as criaram e as regem geralmente  consta a regra, como do art. 44, § 2º, da lei da OAB, que não mantêm nenhum vínculo com a Administração pública.

E o mesmo reza o Regimento Interno do CREF4 - SP – Conselho Regional de Educação Física, de São Paulo, do qual se lê:

Art. 1º - O Conselho Regional de Educação Física da 4ª Região – CREF4/SP, dotado de personalidade jurídica de direito público, entidade sui generis, de natureza autárquica corporativa especial, possui autonomia administrativa, financeira e patrimonial, nos termos do art. 4º da Lei Federal no 9.696/98, alterada pela Lei Federal nº 14.386/22,

Art. 2º – O CREF4/SP é organizado e dirigido pelos próprios Profissionais, com independência e autonomia, sem qualquer vínculo funcional, técnico, administrativo ou hierárquico com qualquer órgão da Administração Pública, e é mantido pelos Profissionais de Educação Física e pelas Pessoas Jurídicas que oferecem serviços nas áreas de atividades físicas, exercícios físicos e do desporto,

Parágrafo único - O CREF4/SP possui autonomia administrativa, financeira, patrimonial, orçamentária e política, inclusive no que tange às relações empregatícias sem qualquer vínculo funcional ou hierárquico com os órgãos da Administração Pública.  (Itálicos nossos)

  

V – O Supremo Tribunal Federal reconheceu em 2.020 que estão corretas as leis corporativas que afastam as autarquias de fiscalização  profissional do âmbito da Administração pública.

Trata-se da mencionada ADC 36 – DF, verdadeira enciclopédia jurídica como já se aventou, e da qual no sentido acima se transcreve apenas este seguinte excerto, do voto vencedor do Min. Alexandre de Moraes (autor apenas do primeiro parágrafo a seguir transcrito, sendo nossas as aspas e todos os itálicos):

A propósito de distinguir quais elementos do regime jurídico de Direito Público incidiriam no caso dos Conselhos Profissionais, confira-se o magistério de Lucas Rocha Furtado, transcrito a seguir :

“Dado que são autarquias, a elas se aplica o Direito Público, porém, em função de particularidades que lhes são próprias, de forma mitigada. A Constituição Federal dispõe, por exemplo, que a criação de cargos, empregos ou funções públicas depende de lei. Seria, portanto, necessária a aprovação de lei federal para criar um emprego de secretária ou de ascensorista ou qualquer outro para o Conselho de Educação Física, por exemplo?

Parece-nos que a observância das normas públicas não pode ocorrer de forma plena ou absoluta sob pena de se mostrar, por vezes, totalmente absurda.

São autarquias especiais. A sua especialidade – e neste ponto não podem ser confundidas com as autarquias em regime especial – está no fato de que não integram a Administração Pública. Elas não se subordinam ou vinculam a nenhuma outra entidade. No desempenho de suas atribuições, devem dispor de plena e absoluta liberdade administrativa, gerencial, financeira e orçamentária, tendo como limite a lei que as criou e os princípios constitucionais.

Dado este fato, ao se relacionarem com o mundo exterior, vale dizer, quando contratam empresas ou empregados, devem observar, dentre outros, o princípio da impessoalidade. Isto importa na necessidade de realização de licitações e de concursos públicos. Quando exercem suas atribuições de fiscalização, devem observar, em especial, os princípios do contraditório e da ampla defesa. Nestes aspectos, sujeitam-se às normas de Direito Público. Mas ao desempenharem atribuições internas que não importem em violação de qualquer dos princípios constitucionais, não se justifica a aplicação de normas de Direito Público.

Essas autarquias especiais devem, assim, em suas contratações realizarem a prévia licitação. Estas não necessitam, todavia, observar fielmente as regras previstas na Lei 8.666/93. As licitações das autarquias corporativas devem observar regras eventualmente editadas previamente por elas mesmas, regras que busquem realizar a impessoalidade, a publicidade, a moralidade, a eficiência, etc.

À OAB, ao CREA, aos Conselhos de Contabilidade etc., não se justifica a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/02 – ou da Lei 4.320/64. Estas leis existem para disciplinar e limitar os gastos públicos efetuados pelas entidades da Administração Pública. Dado que as autarquias corporativas não integram a Administração Pública, a elas não se aplicam essas leis. A necessidade de que os cargos, empregos ou funções a serem criados na Administração decorra de lei é forma de controle a ser exercido pelo Legislativo sobre o Executivo. Em relação às autarquias corporativas, que dispõem de plena autonomia administrativa, gerencial, financeira etc., não se justifica a necessidade de lei para criar empregos. O dever de realizarem concurso público e licitação decorre da aplicação dos princípios constitucionais de moralidade, de impessoalidade, de publicidade etc.” (Curso de Direito Administrativo, Lucas Rocha Furtado, 5ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2016. pag. 160)

VI – Passemos agora ao tema deste artigo: licitações nos entes fiscalizadores de profissões.

A lei nacional de licitações e contratos, Lei nº 14.133/21, reza:

CAPÍTULO I

DO ÂMBITO DE APLICAÇÃO DESTA LEI

Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:

I - os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa;

II - os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.

§ 1º Não são abrangidas por esta Lei as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias, regidas pela Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, ressalvado o disposto no art. 178 desta Lei.

Pela só leitura desta abertura da lei de licitações o aplicador se dá conta de que não se aplica a lei de licitações a quaisquer Conselhos, Ordens ou outras entidades de fiscalização do exercício de profissões, que em geral são autarquias especiais, corporativas, sui generis (singulares) e absolutamente distintas das autarquias comuns.

Assim como as empresas estatais (sociedades de economia mista e empresas públicas), assim como às  empresas controladas pelo Estado, não aplicam a lei nacional de licitações e contratos administrativos porque (corretamente) têm a sua própria lei licitatória (Lei nº 13.303/21), então muito menos se poderia pretender aplicar a lei de licitações do entes públicos àqueles Conselhos e Ordens.

Se esses últimos entes não integram nem sequer a administração pública indireta da União, então como imaginar vê-los debaixo da lei publicística concebida para a Administração pública ?

Licitação para os Conselhos, sim, porque é uma regra de isonomia e de escolha da maior vantagem; lei nacional de licitação e contrato administrativo, absolutamente não.

 

VII – O que se observa entretanto nos Conselhos e nas Ordens é que realizam uma ginástica monumental, totalmente inapropriada e desconfortabilíssima, para dar um jeito de aplicar a Lei nº 14.133/21 nas licitações que realizam.

Mais ou menos como vestir uma calça 38 num corpo de magazine 46, ou então um sapato 36 num pezinho tamanho 43, é de dar dó o injusto esforço, hercúleo e despropositado, por parte daqueles organismos de fiscalização profissional, para aplicar as regras licitatórias públicas nos certames que realizam ([2]).

Tudo isso ocorre porque a cada Conselho falta uma norma própria de licitação; então, vamos encostar na lei nacional ...  uma péssima ideia !   O comodismo de não ter de elaborar a norma própria conduz à desastrosa adesão a uma lei nacional que hoje por acaso é monstruosamente grande, inadequada e inconveniente !

Observe-se, e seja repetido, que nem mesmo as entidades da administração indireta, que são as empresas do estado, precisam seguir a lei geral de licitações. A Constituição previu edição de lei especial para elas, e o legislador – ainda que tardiamente – as dotou de uma lei própria, mais adequada à sua estrutura empresarial e não de administração direta.

E quanto aos Conselhos, por quanto tempo ainda permanecerão esmagados  pela lei de licitação, tão singela quanto uma baleia azul em cólera, tão delicada quanto um brontossauro na descida,  tão aprazível  quanto  um terremoto  ou um dilúvio com raios  ?  - ou alguém pensa diferente da encantadora Lei nº 14.133, de  1º de abril de 2.021 ?

É mais do que hora de os entes fiscalizadores de profissões se moverem  para ter normas de licitações simplificadas, que sirva a estrutura mais ou menos comum a todos e afaste este, respeitosamente,  asqueroso abantesma jurídico que é a atual lei de licitações ([3]).

Ou de outro modo – o que parece muito mais prático e exequível, ante a inexistência de limitação ou restrição aplicável -  cada Conselho, federal ou regional estadual, pode editar sua própria norma de licitação e contratação.

E não se fale em lei nacional, porque uma lei, que é ditada pelo governo, afrontaria a autonomia administrativa de cada Conselho, legalmente prevista a cada caso e a qual lhes assegura disciplinar seus assuntos internos sem sujeição a lei alguma de natureza própria à Administração pública – o que os Conselhos não são.

Assim, observados os princípios constitucionais de administração, no mais fica bastante livre o ente fiscalizador para exercitar sua autonomia administrativa, a mesma referida na lei que o criou e contra a qual não existe nenhuma resistência jurídica, doutrinária ou jurisprudencial – muito ao contrário.

Esperar não é saber, cantara-o Geraldo Vandré, e quem quer deve fazer, tomando a iniciativa e  não esperando até ver Colombo, como pôde,  ajeitar o ovo em pé numa mesa.

 

 

[1] Ressalve-se que no julgamento da ADI 3.026 (Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, DJ de 29/9/2006) foi excetuada a Ordem dos Advogados do Brasil da incidência dessas regras, em vista da peculiaridade desa entidade exercer função constitucionalmente privilegiada, a representação de profissionais indispensáveis à administração da Justiça, além da defesa dos interesses da cidadania e da sociedade civil. (Do soto do Min. Alexandre de Moraes na ADC 36 – DF) (Destaque original)

[2] Uma concorrência por técnica e preço (art. 50, IV) comer 35 (trinta e cinco) dias úteis do licitador, apenas para  publicidade do edital  ?  Dois meses e meio apenas para isso ? E a licitação levará em geral seis meses, se inexistir intercorrência judicial !   Isso é matéria de uma lei séria ? Na empresa do parlamentar que aprovou essa infâmica em um dia ele escolhe a mais adqueada contratanda do país, mas submete o poder público a excrescências como esta !

[3] O Decreto-lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1.986, que unificou e estandardizou as licitações brasileiras, tinha 90 artigos. A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993, que o sucedeu, tinha 126 artigos. Esta teratológica Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2.021, tem 194 artigos. A próxima lei talvez atinja os 300 artigos, para gáudio do legislador e desespero do aplicador, do ente público, do licitante e do direito.